Bibliofilia: Amor por livros e por ler. O Bibliófilo ama ler e sente devoção pelos livros, colecciona-os e admira-os.

02/03/2011

Autor vs Obra

Surgiu no fórum Bang! uma animada discussão que acabou por derivar para o seguinte tema:
Até que ponto o leitor consegue/deve separar a apreciação da obra da opinião acerca do autor?

Lembro-me de alguns casos concretos: Miguel Sousa Tavares, António Lobo Antunes. Ambos são pessoas que desencadeiam polémica com as suas declarações, e ambos são escritores de sucesso. Também José Saramago despertou ódios em muita boa gente, e algumas das pessoas que o consideraram alguém desagradável são também admiradores da sua escrita.

A verdade é que na literatura procuro não misturar as águas, e tento não partir para uma leitura influenciada pela minha opinião pessoal acerca do autor em quanto pessoa. No caso particular do MST, do qual tenho uma opinião mais definida e não muito positiva, demorei muitos anos a finalmente ler o romance Equador, mas as razões foram todas menos o facto de não simpatizar com ele. Acabei por adorar o livro, tornou-se um dos meus favoritos, e continuo a considerar MST igualmente detestável nas suas intervenções na televisão (mesmo que admita que tem razão no que diz).

Terry Goodwin, autor da saga The Sword of Truth, causou uma enorme polémica no seio dos leitores de Fantasia, com algumas declarações e tomadas de posição no mínimo "fortes" relativamente aos seus livros e à literatura do género Fantasia e com considerações políticas. As suas afirmações inflamaram a internet (onde eu descobri essas barbaridades do senhor, aqui) e os leitores de Fantástico.Com muitos leitores perdidos pelo caminho, arrisco dizer.

A questão alarga-se a outras áreas que não a literatura, por exemplo, as recentes notícias do despedimento do estilista Galliano por declarações anti-semitas e de admiração nazi. A verdade é que o talento de Galliano é reconhecido independentemente das suas convicções, mas obviamente a questão moral associada não pode ser ignorada. Mais uma vez a questão criador vs obra é difícil de gerir.
Há uns anos atrás Tommy Hilfigger foi envolvido numa polémica relacionada com alegados comentários racistas, que originou um boicote aos produtos da sua marca que durou anos. Não se verificou a veracidade desses comentários, mas milhares de pessoas no mundo inteiro não hesitaram em deixar de adquirir as peças do criador e a sua marca. 

Estou convencida que tenho conseguido separar as águas, mas tenho relutância em afirmar com certeza que se um escritor proferisse declarações como as de Galliano, ou piores ainda, eu gastaria o meu dinheiro num livro seu. 
E vocês, conseguem separar o autor da sua obra? Avaliar um livro pelo que é e ignorar a opinião que têm do seu autor?

14 comentários:

  1. Somos humanos, por isso creio que será impossível separar as águas em toda e qualquer ocasião. É claro que muitos factores entram em conta quando compramos um livro, mas o identificarmo-nos com um autor ou com o que ele diz pode ser, ou não, uma parte da decisão. Por exemplo, se eu andar a pesquisar um livro que me chamou a atenção, e chegar ao blog do autor/autora, e até achar piada às coisas que ele/a diz, isso empurra-me na decisão de comprar. (Não estava a pensar no caso discutido no fórum, com o DS, quando formulei este exemplo, mas agora que penso nisso, se fosse uma leitora em potencial dele e fizesse este exercício ficaria um bocado mal impressionada com o post e a pseudo-polémica relacionada, e isso empurrar-me-ia para a decisão de não comprar. Mas, claro, temos todos a liberdade para mandar cá para fora o que nos parecer melhor na forma em que nos parecer melhor.)

    Adiante. No outro lado da questão, e precisamente com os casos que referes, o MST e o Saramago, eu nunca me ofendi/desgostei/pasmei com qualquer coisa que eles tenham dito e eu ouvido. Na verdade, ignorei. Isso não me impediu de gostar dos dois livros do Saramago que li até agora. E também não me impediu de nunca ter pegado nos do MST (mas no caso dele não peguei porque achei o fim da série Equador deprimente).

    Oh bolas, tanta divagação e agora se calhar não consigo levar o navio a bom porto. O que queria dizer era mesmo a parte de vários factores nos atrairem ou repelirem para um autor ou livro, e que como leitores será muito difícil manter separado o limiar autor/livro. Pois é o autor que despeja um bocadinho de si no livro, e o livro reflecte sempre um ponto de vista do autor. Para além de que conhecer um pouco o autor ajuda muitas vezes a contextualizar aquilo que lemos. Um livro que não nos agrade muito pode ter outra leitura se conhecermos algo do perfil e do posicionamento do autor na vida. Escrever é um processo íntimo, mas ao mesmo tempo partilhado, pois quando o livro chega ao leitor este sente. E quer saber mais.

    Ou seja, se quiseres saltar a divagação, o meu voto é: é uma questão complicada, mas creio que é virtualmente impossível separar a pessoa do que é escrito.

    Se chegaste ao fim, parabéns! Ganhaste um prémio (a minha gratidão eterna xD).

    Cumps,
    p7

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  2. Com muita sinceridade devo admitir que normalmente leio um livro pelo que sei dele, pelo que dele me chama a atenção (seja a capa, a sinopse ou qualquer outro aspecto) e não olho muito às atitudes do autor enquanto pessoa e na suas intervenções numa vida, mais ou menos, pública.
    Contudo, devo admitir que há obras que nunca li e relativamente às quais nunca tive qualquer tipo de atracção por causa do autor. É o caso de Lobo Antunes, por exemplo. Não suporto o senhor e nem me dou ao trabalho de ler as sinopses ou opiniões de outrém sobre os seus livros. Talvez gostasse se me dedicasse à leitura mas...
    Enfim, são casos muito raros pois, como já referi, normalmente sou capaz de fazer uma separação das coisas. Há pessoas horriveis que escrevem verdadeiras obras de arte e também há pessoas mágnificas que só fazem asneira quando à escrita se dedicam. O melhor é ler se a obra nos chamar, de algum modo, a atenção, se nos conquistar. Contudo, por vezes este processo de conquista e enamoramento é complicado pelo próprio autor.
    Concluindo o testamento, esforço-me por distinguir as coisas e, regra geral, sou bem sucedida na tarefa mas há casos complicados.

    Bjs

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  3. Tento, tanto quanto possível, julgar o livro pelo livro e nada mais. Mas há situações em que isso se revela bastante difícil ou impossível e o caso que deu origem à tal discussão é um deles.
    Não é a primeira vez que este tipo de polémicas surgem, com o mesmo tom, com alguns insultos pelo meio. E, porque me desperta genuína estranheza a ideia de que um autor insulte leitores (presentes ou potenciais), neste tipo de situações a verdade é que opto por manter a distância dos livros desse autor.

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  4. Teoricamente, consigo separar as águas e acho que seria mesmo o ideal. Mas a linha é muito ténue e como somos seres humanos temos tendência a levar em consideração a pessoa que está por detrás de determinado livro, em maior ou menor grau.

    A verdade é que não conheço o suficiente da maioria dos autores que leio para dizer se simpatizo ou não com eles, mas quando conheço um pouco o autor e gosto da pessoa, acho que é mais fácil comprar o seu livro. Por isso, o facto de ser uma pessoa com que simpatizo mais ou menos influencia a minha decisão de comprar/ler, mesmo que depois me esforce por separar as água quando analiso o que li.

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  5. O teu post fez-me lembrar do realizador Roman Polansky. Óptimo realizador, mas de momento a ser julgado, já não tenho bem a certeza se por violação se por pedofilia. Mas os seus filmes não deixam de ser bons.

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  6. P7, concordo contigo no exercício que fizeste de imaginar a tua impressão se quisesses saber um pouco mais do DS visitando o seu blog. Aliás, eu própria já o fiz e posso dizer que não passei a frequentar o blog, simplesmente.
    Penso que a questão aqui se prende também com o tipo de opinião que temos, quer da obra, quer do autor. No meu caso, li O Evangelho do Enforcado e se bem que admita que está bem escrito, não foi de encontro aos meus gostos. Fiquei curiosa em relação a outros livros do autor, dando o benefício da dúvida para leituras futuras, visitei o blog várias vezes e não fiquei impressionada. Provavelmente se tivesse adorado o livro que li dele, e não tivesse gostado de algumas posições, seria muito mais fácil ignorar o autor e apreciar a obra e continuar a comprar os seus livros.
    Em contrapartida, penso que é mais difícil de fazer o distanciamento se a opinião for positiva do autor enquanto pessoa. Se o seu livro não nos encheu as medidas, mais facilmente damos o benefício da dúvida para um próximo livro, se o autor for um gajo porreiro e tal. A sua obra é melhor por essa razão? Certamente que não.

    Alice, o caso de Lobo Antunes elucida bem esta questão, porque como tu há imensa gente com a mesma posição.

    Silent, percebo bem o que dizes. Já acompanhei outras discussões do género, esta é só mais uma, que acabou por se expandir para outras plataformas. Tal como tu haverá muita gente a escolher manter essa distância.

    Célia, eu também penso que não sei muito acerca da maioria dos autores que leio. Surgem casos muito pontuais de vez em quando, e como dizes, a linha é muito ténue.

    Olinda, não me lembrei do Polanski, mas é um excelente exemplo! Está acusado de violação de uma menor.

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  7. Apenas para acrescentar que se de cada vez que quisessemos ler ( ou adquirir) um livro, préviamente tivessemos de fazer uma pesquisa para "avaliar" ou "caracterizar" o seu autor em função das suas posições ideológicas, politicas, religiosas,etc, ou das frases felizes ou infelizes que profere,ou da sua posição relativamente ao aborto, ou ainda das suas relações extramatrimoniais com uma macaquinha de marte, ou ainda..., etc, bem, acho que hoje em dia ainda não teria lido qualquer livro, de qualquer autor.Clássico ou não.Porque estes senhores, apesar de serem escritores e nos entreterem com as suas histórias fabulosas, ternas ou românticas, são de carne e osso como nós e enfermam como tal dos defeitos e virtudes de que também somos possuidores, em maior ou menor grau.
    Daí que a unica avaliação que devemos fazer é da obra que lemos.Que pelos mais diversos motivos, pode atravessar o espectro da classificação, vogando entre o excepcional e o lixo puro.
    E cada um de nós fará essa avaliação de acordo com os seus próprios conceitos, decidindo se dá mais uma oportunidadae a um determinado autor ou se vai a uma sessão de autógrafos para lhe dar com o livro na careca..rsrs...:):)

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  8. Bem vindo de volta caríssimo Archeth! :)
    Claro! A minha questão é mais no racíocinio inverso, quando antes de ler a obra já se sabe qualquer coisa sobre o autor, coisa essa que por vezes nos impele ou afasta da direcção do livro.
    Nunca te aconteceu não teres vontade de ler um livro porque o autor é uma besta? :P

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  9. Cat(zinha), é sempre um prazer (re(re(re)visitar o teu blog.
    Há um autor de nome James Ellroy, que nas atitudes que tem, e muitas das vezes naquilo que diz, é uma autêntica besta.
    Mas, ironia das ironias( ou talvez, nem por isso!..)tem livros ...bestiais.
    Incongruências humanas.
    Mas tens razão, há de facto autores, que nos tiram a vontade de ler os livros que escrevem.Como dizia a minha avó, "pela aragem se vê o que vai na carruagem":):

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  10. Tenho por hábito separar as águas mas confesso que, embora as obras do David Soares nunca me tenham chamado muito à atenção, depois de ler alguns dos seus comentários e de ter em consideração a sua maneira de ser, menos vontade tenho de o fazer.

    Tal como a p7 diz, quando lemos a obra de alguém sentimos parte dela retratada na obra, pois é impossível separarmo-nos completamente da nossa escrita, o que me faz pensar se gostaria da obra do DS, por exemplo...

    Provavelmente não devia pensar desta forma mas é esta a minha opinião.

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  11. Archeth, anotei a sugestão. E bom, em última instância a obra é que conta, e antes todos os autores publicados fossem umas bestas se isso garantisse sempre qualidade.

    Rita, percebo-te. Eu procuro sempre pensar que não me devia deixar influenciar, mas a verdade é que quando se está indecisa ou indiferente em relação a um autor, no teu caso o DS, há sempre algo que faz pender a balança, e se for uma opinião desagradável, esse peso é maior e o estrago está feito.

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  12. Acontece-me muitas vezes evitar um determinado livro mais pelo que ouço falar sobre o seu conteúdo do que propriamente pela minha opinião sobre a personalidade do autor. Para mim, o seu carácter e as suas ideologias não lhes diminui a sua sensibilidade e inteligência para a escrita.


    Se formos a ver bem, muitos dos autores que ganharam o prémio nobel são já por si polémicos e são bastante criticados por determinados grupos de pessoas que têm outros ideais (políticos, religiosos,...) como é o caso do Saramago e do Vargas Lhosa. Confesso que até gosto de conhecer novas perspectivas e opiniões, principalmente quando diferem das minhas.

    Se assim não fosse, tal como tu, nunca teria lido o Equador, que é um dos meus livros favoritos até à data e não estaria agora a ler um livro de Saramago.

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  13. Tens razão, Landa, muitos dos autores reconhecidos e premiados são bastantes polémicos. Talvez um bom autor seja consequência de uma mente independente :)
    Mas por exemplo, se um escritor fosse abertamente nazi e racista, e os seus ideais incluíssem a discriminação de povos e escolhas pessoais, não te sentirias reticente em comprar a sua obra e lê-la?

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  14. Sim, dificilmente pegaria num livro de um escritor que fosse declaradamente racista, da mesma forma que não imagino um crente a ler os livros de Saramago que são declaradamente um ataque ao Cristianismo.

    Mas, uma vez que a literatura é uma forma das pessoas se exprimirem, penso que os ideais dos autores vêm quase sempre implicita ou explicitamente nos seus livros. Portanto, acredito que os livros de autores abertamente nazistas ou racistas não me chamariam a atenção, até porque eu procuro sempre ter opiniões dos livros que leio para não ter desilusões.

    É claro que existem excepções, como é o caso do autor Günter Grass que, após ter ganho o prémio nóbel confessou que era nazista o que desiludiu os seus admiradores.

    Mas penso que nunca aconteceu ler ou evitar um livro ao ponto de abominar os ideais do autor.

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